Telma P. Vinha
Faculdade de Educação – UNICAMP
Faculdade de Educação – UNICAMP
Conversando com professores e pais percebemos um crescente sentimento de
preocupação com algumas atitudes de nossas crianças e jovens contrárias aos
princípios morais. São relatadas condutas ofensivas como agressões, descaso,
vandalismo, preconceito e humilhações. Muitos se perguntam o que pode ter
levado uma criança que parecia ter um “bom comportamento” a agir
daquela maneira quando não estava sendo observada ou quando julgou que não
seria punida. A indisciplina dos alunos, além de interferir diretamente na
qualidade do ensino, tem sido apontada, por diversos estudos, como um dos
fatores de desmotivação com a carreira do professor. Como medida para contê-la,
muitos defendem o policiamento intensivo e permanente dos alunos e a adoção de
medidas mais duras em relação ao comportamento, incluindo expulsão ou
comunicação ao Juizado da Infância e da Juventude. Outros sugerem a contratação
de mais funcionários e a implantação de projetos de conscientização e
valorização da escola, envolvendo pais, alunos e comunidade. Se, por um lado,
todos os educadores gostariam de que seus alunos respeitassem as regras, por
entendê-las como necessárias para o convívio em sociedade, percebemos que a
insegurança e o despreparo diante dessas situações os têm levado a adotar
soluções temporárias e pontuais como mecanismo de contenção de conflitos.
Inúmeras escolas, por exemplo, dão advertência e suspensão como procedimento
disciplinar nas agressões físicas. Todavia, questionamos o que o aluno aprendeu
ao receber tal “penalidade”. Será que a partir delas desenvolveu formas não
violentas de expressar seus sentimentos? Ou estratégias mais cooperativas e
justas para resolver seus conflitos? Provavelmente aprendeu apenas que deve
evitar brigar dentro da escola. É o bom e velho “te pego lá fora”. É visível
que algo não está funcionando bem nesse formato. A criança fica sob nossa
tutoria por anos, então por que não estamos conseguindo ajudá-la a identificar
seus sentimentos de raiva ou rancor e a expressá-los de forma a não causar
danos maiores? Por que não estamos conseguindo ensinar nossos jovens a resolver
os conflitos de forma mais elaborada, por meio do diálogo? Será que estamos
apenas controlando seus comportamentos de forma a evitar o conflito no espaço
escolar? Será que realmente, como afirmam muitos especialistas, não temos nada
a ver com o que ocorre fora dos muros da escola? Não queremos formar jovens
desrespeitosos ou que são “educados” apenas diante de contenção, recompensa ou
vigilância. Pessoas assim agem por conformismo, medo, obediência acrítica a uma
autoridade, ou ainda por necessidade de agradar o outro. Queremos jovens que
saibam interagir nas mais diversas situações seguindo critérios e regras morais
próprios, que levem em consideração o sentimento, as necessidades e as
perspectivas de si mesmos e dos demais participantes. Gostaríamos que os alunos
entendessem as regras como necessárias na organização dos trabalhos e para que
haja justiça, harmonia e respeito nas relações. E que estas devam ser seguidas
sem expectativa de um retorno concreto por isso.
O desenvolvimento da
autonomia moral
Segundo a teoria
construtivista de Jean Piaget, os valores morais são construídos a partir da
interação do sujeito com os diversos ambientes sociais. Assim, a moralidade não
se aprende por meio da transmissão verbal. Ela se desenvolve em estreita
conexão com o meio social, num processo de construção contínua. Para Piaget, a
questão da moralidade não reside somente no cumprimento de normas e regras, e
sim nos motivos de as seguirmos. Assim, duas pessoas podem não furtar por
motivos distintos. Uma, por medo de ser pega. A outra por entender que os
objetos não lhe pertencem. Ambas não furtaram, mas a motivação foi muito
distinta. É nessa motivação que reside o valor moral da ação. A criança nasce
na anomia, isto é, na ausência total de regras e leis. Mais tarde, aos 3 ou 4
anos, quando começa a perceber a si própria e aos outros, entendendo que há
coisas que podem ou não ser feitas, torna-se heterônoma. No sujeito heterônomo,
a fonte de obediência é exterior. Ele sente-se obrigado a obedecer às pessoas
que consideram dotadas de autoridade, submetendo-se aos valores de sua
comunidade de acordo com as circunstâncias, com valores próprios pouco
conservados, pois a regulação é externa. Isto significa que em alguns
contextos, a pessoa segue determinados valores e em outros não. E como o que a
regula são fatores externos, seu comportamento pode se transformar, quando os
fatores externos mudam. Voltemos ao exemplo de quem furta. A pessoa que se
regula pelo medo de ser pega (heterônoma) pode vir a cometer o delito na
ausência de vigilância ou do medo de ser punida (fator regulador externo). A
partir dos 8 anos, com a entrada no período operatório concreto, a criança tem
a possibilidade
de desenvolver sua autonomia. Nós, adultos, temos simultaneamente as duas
tendências morais, autônoma e heterônoma em níveis diferentes. O indivíduo
autônomo é aquele que deixa de legitimar a regra pela simples autoridade, e sim
mas por entendê-la como um contrato entre iguais. Ele segue um código de ética
interno, obrigando-se a considerar o outro além de si, passando então a
praticar a auto-regulação. Assim, não importa o fator externo, pois são seus
valores íntimos que norteiam seu comportamento. “Eu não furto porque não pego
algo que não é meu.”
O ambiente de desenvolvimento
sociomoral[1]
Inúmeros estudos indicam que as
escolas influenciam de modo significativo a formação moral de crianças e
jovens. Não devemos minimizar a influência da família, mas precisamos modificar
a crença reducionista e cômoda de que a escola é impotente diante dela. A
moralidade, como vimos anteriormente, desenvolve-se em estreita relação com o
meio, dependendo da qualidade das relações sociais. Ora, se a criança e o jovem
passam grande parte de sua vida interagindo dentro de uma instituição de
ensino, desenvolvendo relações baseadas em normas, comportamentos e em
conceitos ali estabelecidos, como ignorar a influência do ambiente escolar
neste processo? Consciente ou não, a escola sempre atuará no desenvolvimento da
moralidade de seus alunos. Contudo, ainda são poucas as que os conduzem em
direção à autonomia.
Piaget considera que a autonomia não
se desenvolve em uma atmosfera de autoridade, opressão intelectual e moral.
Também não se dá por discursos, sermões, sanções, normas ou atividades
estéreis. Ao contrário, para que ela ocorra, são fundamentais as vivências em
situações de cooperação, liberdade de pesquisa, respeito mútuo e também a
experiência de vida. É a partir dessas trocas que a criança desenvolve sua
personalidade, percebendo aos poucos que as pessoas têm diferentes necessidades
e maneiras de pensar e agir. Nenhuma escola quer formar alunos acríticos,
obedientes, submissos ou heterônomos. Todavia, no cotidiano das famílias e das
escolas, os adultos utilizam procedimentos que levam as crianças e jovens a se
submeterem às normas porque uma autoridade que sabe o que é “melhor para elas”
assim o quer. Esses caminhos levam mais à obediência do que à autonomia. Assim,
encontramos comumente nas escolas a imposição de regras tolas e desnecessárias (“não
usar modismos, não conversar sem a autorização do professor”), normas que
não se flexibilizam (“não posso deixar você entrar sem uniforme, mesmo
sabendo que caiu achocolatado na sua camiseta e você estava na casa de seu pai,
onde não há outra camiseta para você trocar”), ou normas embasadas na mera
obediência da autoridade (“não pode usar boné porque é regra da escola”).
Para que tais normas sejam cumpridas, são empregados procedimentos exteriores
(recompensa, censuras, ameaças, vigilância ou punição), reforçando a submissão
e a obediência acrítica. Esses procedimentos dificultam a compreensão do motivo
das regras, podendo em longo prazo apresentar efeitos indesejados, pois dificultam
que o jovem construa suas próprias razões internas para seguir as regras
morais. Para haver legitimação, é importante que o educar faça o cumprimento
das normas corresponder a uma sensação de bem-estar, de satisfação interna, de
orgulho ao respeitá-las, e também que promova a reflexão sobre as possíveis
consequências do não cumprimento das mesmas. Sob a perspectiva da autonomia, os
conflitos são necessários ao desenvolvimento da criança e do jovem, devendo ser
encarados como ricas oportunidade de se trabalhar valores e regras. Assim, o
educador não prioriza a solução do conflito em si, mas o processo de resolução
e a forma com que os envolvidos enfrentam o problema (o que se aprende com o
ocorrido). Os educadores que dominam esta concepção compreendem o conflito e
sua solução como partes importantes do currículo, assim como outros conteúdos
que precisam ser trabalhados. E, ao invés de gastarem tempo e energia tentando
preveni-los, aproveitam-nos para auxiliar os alunos a conhecerem seus próprios
pontos de vista, os pontos de vista dos outros e a buscarem soluções
aceitáveis, respeitosas e cooperativas. Construir na instituição educativa um
ambiente favorável ao desenvolvimento de personalidades autônomas é algo
complexo, ainda pouco compreendido, mas necessário se de fato queremos formar
cidadãos éticos. É necessário ainda o entendimento que a ética deverá estar
presente nas mais diversas dimensões da escola, tais como na relação da equipe,
no trabalho docente, na postura, nos juízos emitidos, na qualidade das
relações, nas intervenções da indisciplina, do bullying, na maneira como
o conhecimento é transmitido, trabalhado e avaliado, nas relações com a
comunidade… Passa a ser o eixo central que estrutura todas as atividades e
relações.Para que haja tomada de consciência é preciso também que haja
reflexão. Para isso, a moral também deve ser apresentada como objeto de estudo
multidisciplinar, abrindo oportunidade de se pensar e debater sobre o tema,
podendo-se utilizar como recursos: filmes, textos, teatros, murais e trabalhos
artísticos. É preciso também oferecer propostas de atividades sistematizadas
que trabalhem os procedimentos morais, tais como assembleias, discussão de
dilemas, debates etc. Assim, possibilita-se a apropriação racional de normas e
valores, o autoconhecimento, a reflexão do motivo de se agir de acordo com
regras justas e necessárias, a aprendizagem de formas mais assertivas e
eficazes de se resolver conflitos e, consequentemente, o desenvolvimento da
autonomia.Considerando que a moral traz auto-restrições à liberdade, uma pessoa
só aceitará tais restrições se fizerem sentido para ela, se lhe trouxerem o
sentimento de auto-respeito, de dignidade ou de honra. Uma educação que visa
efetivamente ao desenvolvimento da autonomia, e não à simples obediência
conformista às regras impostas, não pode ser reduzida à transmissão de valores
por meio de discursos, à imposição de normas e sanções ou a atividades
estéreis.A conquista de relações equilibradas e respeitosas, o que não
significa que os conflitos estarão ausentes, não é decorrente de um simples
processo de amadurecimento ou de se aguardar passivamente a mudança da
sociedade como pré-requisito para tanto. Essa conquista depende de todo um
processo de construção e aprendizagem, visto que a criança ou o jovem não irão
aprender sozinhos questões tão complexas se não foram previstas boas
intervenções e oferecidas situações que contribuam para essa aprendizagem.Em
vez de investirmos nossos esforços na antecipação, contenção e obtenção de um
“bom comportamento” do aluno (muitas vezes por medo ou conformismo), deveríamos
dirigir nossos olhares para o desenvolvimento e para a aprendizagem da
autonomia. Nessa perspectiva, a ética é considerada “vacina e não remédio”,
necessitando para tanto de uma contínua vivência da cidadania em um ambiente
sociomoral cooperativo.
Telma Vinha é pedagoga, doutora em Educação e professora da Faculdade de Educação da
Unicamp. Pesquisadora na área de relações interpessoais e desenvolvimento
moral, é autora de O educador e a moralidade infantil e de Quando a
escola é democrática: um olhar sobre a prática das regras e assembleias na
escola.
[1] Um ambiente sociomoral é toda a rede de
relações interpessoais que forma a experiência escolar do aluno, incluindo o
relacionamento com o professor, com os colegas, com os estudos e com as regras.